quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Histórias do passado para escrever no futuro

     
                                     (Por Cátia Rodrigues)
 Suco de Laranja, pardais gorjeiam no beiral. Eu gosto do seu canto, humilde e simples, duas notas, é só um piar; mas é alegre. Mas agora, que é o tempo do Sabiá da cor do meu suco cantar, há uma nobreza maior no ar, várias notas que alcançam o coração trazendo mais que alegria, enchendo de felicidade.

      Enquanto isso, reminiscências. Lembranças de um tempo vivido em outras cordas, ou em outras vidas.

      Uma virgem de cabelos lisos e negros, corpo miúdo e pele vermelha urucum, num período pré colombiano da América Central, sacrificada aos deuses. Muitas foram, mas desta eu me lembro em especial, como se eu mesma estivesse ali. Pânico, senso de injustiça, fé. Sangue e Morte. E um sentido ainda não compreendido. Nem pela índia, nem agora, por mim.

        De Provença, trago o cheiro da lavanda nas narinas. Nunca mais saíram daqui, de dentro de mim. Em um campo de flores, destas que em qualquer lugar nascem apenas com a vontade de Deus, eu brincava, ainda moleca com uns 15 anos. Cabelos longos, volumosos, castanhos claros e ondulados. Vestido leve, nada formal para a época. Quando terá sido? Flores brancas, amarelas, umas poucas azuis, e muito mato verde, na altura das canelas. É bom correr entre as flores, perto da casa humilde, de pedras e dois andares, um dia mais estilosa. É bom deitar embaixo da árvore e contemplar a montanha azul acinzentada, as nuvens brancas e o céu anil. Ali era familiar. Até hoje, a Primavera é minha estação preferida do ano. Sei de um homem bom, neste mesmo cenário, que em nome da honra, matou um adolescente que engraçava-se com sua tão mais jovem esposa, adquirida por negócios de família. Atônita visão da espada transpassando o corpo do amigo, nunca mais conseguiu amar o marido. Viveu dedicadamente até o fim dos dias do homem, e mesmo com toda a sua bondade e generosidade, ela não o perdoou. Foi preciso nascer de novo para encontrarem amor entre eles.

      Do deserto, só me lembro de Marrocos, e um pouco da Turquia. Jamais em outros lugares. Mas foi há centenas de anos que nos vimos no deserto, e mesmo assim trago areia nos olhos nesta nova vida que escolhi, longe dos extremos de calor e frio. E a cor da pele, e as olheiras, e o nariz adunco, só podem ser de lá que eu trouxe. Ainda sinto o medo do amor arrebatador que faz a pessoa escrava da outra. Aprendizado de que amor é liberdade.

    Recordo-me de uma viúva com quatro filhos, carioca cabocla como eu, filha de índio e de português, magra, não por gosto, mas por necessidade. Gostava do marido, que morreu pela situação de pouca higiene que a cidade enfrentava à época. Tanto crescimento, tanto progresso, e o marido morto por falta de saneamento básico. Tinha que alimentar os filhos. Conseguiu emprego em casa de família, vida simples que logo findou.

    E houve Paris. Inesquecível, sempre. Mas aqui, por outros motivos além de seus encantos. Foi à época da construção da Torre. Eram tantas novidades! Tudo começava a existir realmente! Havia algo recente que, especialmente, a encantava: a fotografia e o fonógrafo. Eram novas teorias, interessantes, discutíveis, libertárias dos dogmas repressivos da religião. Revoluções, arte, a música, alguns conflitos políticos: é adorável o momento de mudança por elevação do espírito e da inteligência humana. Era a Capital do mundo, tudo era arte e despreocupação com o que fosse material, tudo era romantismo, livre de ideais burgueses e da loucura da racionalidade absoluta. Mas um amor boêmio e ciumento, à luz do álcool e do ópio, findou com duas vidas por desconfiança e insegurança: ele a matou, com a criança no ventre. E, depois, morreu aos poucos, por dentro antes do corpo, porque perdeu seu grande amor, e sua filha, Sophia.

       São lembranças saudosas de tudo que eu não vi, daquilo que sei que vivi, intimo dentro de mim. Daquilo que pretendo viver, em minhas letras, em meus romances, que cada vez mais crescem dentro de mim.

     Por ora, apenas o suco de laranja restou num copo abaloado com desenhos que remetem ao Jazz. Os pássaros recolheram-se com o chegar da noite. Apenas a coruja ficou, minha velha amiga, que pousa no muro ali fora e me observa a escrever alguma bobagem e outra, na esperança que possam ser verdadeiros sussuros da alma.

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