terça-feira, 15 de novembro de 2011

Olhos de escuridão


Toda cidade pequena tem suas lendas e mistérios. Esta não é diferente. Um acidente fatal na estrada que corta a pequena cidade é um mistério que ainda é assunto na praça e nas refeições familiares.
Um casal desconhecido da cidade morreu e sua filha de aproximadamente 5 anos desapareceu. Para alguns, o seu corpo lançado fora do carro fora devorado pelos lobos. Os mais céticos dizem que o casal na verdade viajava sozinho e apenas carregava alguns objetos da garota (uma foto, um casaco, um cobertor) o que fez as  autoridades locais (delegado e prefeito), acreditarem que ela viajava junto. Alguns caçadores dizem ter ouvido o choro da menina na mata o que logo é desmentido pelo pio de alguma ave.
Mas a história mais intrigante é de uma misteriosa mulher que, apesar de ser uma senhora de pouco mais de 40 anos, tem a horrenda aparência de uma velha bruxa. Seus longos cabelos negros são iluminados por fios prateados. Seu andar é curvo e resmungão. Suas mãos grossas de unhas negras nos sugerem que ela passa boa parte do seu dia cavando a terra.
Suas roupas não passam de uma camisola de algodão velha e suja e um par de galochas pretas.
Uma velha cabana de madeira construída sobre uma base de pedras, distante do centro da cidade, que um dia já foi uma cabana de caça, hoje é o lar da “velha louca”, “bruxa das galinhas” ou “senhora das almas”. Os diversos apelidos mostram o quanto esta figura é sombria para todos na cidade.
Para uns ela representa “a bruxa” para outros “a curandeira”.
No terreiro atrás da cabana, ela cria algumas galinhas magricelas, presente de algumas pessoas que se dizem gratas a ela. O mais curioso é que a velha gosta de temperar suas galinhas ainda vivas. Ao mesmo tempo em que joga milho as galinhas, também joga sobre elas uma mistura de ervas e sal. Quando alguém esta muito doente ou próximo da morte, pede sua ajuda. E ela oferece uma caneca de sua aguada porém deliciosa canja quente dizendo: “Eu carrego você até o alto se não conseguir subir sozinho”.
Alguns acreditam que ela tem o poder de auxiliar a alma dos mortos a encontrarem o seu caminho. Os relatos falam de suas caminhadas noturnas pela mata escura até um morro próximo à sua cabana. Seu caminho é guiado por seus olhos acostumados à escuridão e iluminado por uma névoa branca que a acompanha. Um véu branco que ela arrasta atrás de si. Uma visão mais próxima, permite distinguir os espíritos levados por ela, formando um cordão iluminado e flutuante. Cada espírito carrega o outro pelo seu hálux. Um após o outro, como se eles boiassem no ar.
Quando chega ao alto do morro, ela eleva cada um em seus braços até que eles possam flutuar sozinhos. Enquanto liberta cada elo do cordão espectral, ela resmunga palavras de uma língua morta ou que nunca viveu.
Os moços da cidade, com sua carga elevada de testosterona e, geralmente aquecidos pelo álcool, sempre zombam da “velha bruxa”, chegando ao ponto de agredi-la com socos e pontapés.
Uma noite, a cidade acordou assustada com o clarão que vinha das margens do morro. Era a velha cabana que ardia com violência enquanto os moços urravam de prazer pelo resultado de mais uma ação contra a “velha bruxa”.
No dia seguinte, após a retirada do que restou do corpo calcinado pelo fogo, a curiosidade fez com que o jovem líder da caça a “bruxa” vasculhasse o que sobrou sob as cinzas e encontrasse, protegida pela base de pedras, uma caixa de madeira que, apesar de chamuscada estava inteira.
Ao abrir a caixa, ele sentiu um arrepio percorrer o seu corpo. Dentro dela havia uma coleção de conchinhas, um pequeno pé de sapato vermelho enfeitado com um laço e um antigo recorte de jornal com a foto da garota desaparecida no acidente. Uma menina linda de cabelos negros e olhar triste que não lembrava em nada a velha das galochas. Afinal, já haviam se passado mais de 30 anos.